Igreja Unitarista Une Crentes em Deus e Ativistas do Ateismo 
JEAN MESLIER PADRE ATEU E COMUNISTA
JEAN MESLIER PADRE ATEU E COMUNISTA

Um padre ateu e comunista no século 17

Um padre ateu e comunista no século XVII. A discussão filosófica é importante, mas não impede a união de classe.

Bernardo Boris Vargaftig, de São Paulo, SP

Jean Meslier

As religiões têm sua origem no passado da humanidade, provavelmente nasceram como cultos agrários quando da invenção da agricultura, que substituiu a coleta e levou à consequente instalação das populações em habitações fixas. 

Não são crenças monoteístas, como pretendem ser as religiões dominantes no mundo de hoje, e com maior frequência representam a projeção da impotência humana no terreno do desconhecido, sendo baseadas em mitologias escritas ou orais. 

Os céticos dirão que a religião é um mito que deu certo.

Estes livros sagrados se pretendem revelados, portanto imutáveis, mas no século XIX um arqueólogo inglês, portador do improvável nome “Smith”, apresentou numa reunião científica a seus ouvintes estupefatos, evidências de que um livro “sagrado” babilônio, de redação muito anterior à idade suposta da Bíblia judeu-cristã, era com esta extremamente parecido, retirando da referida Bíblia a exclusividade de ter sido revelada; passa a ser um documento histórico e suas contradições aparecem e tornam-se públicas. 

A crítica teológica, sobretudo alemã, já empreendeu há mais de um século a discussão dos textos e da história das religiões.

Os estudiosos incluem homens e mulheres de religião.

É comum os marxistas chamarem a religião de “o ópio do povo”.

Era certamente este seu papel principal para as classes dominantes, bem antes do imperador romano Constantino, nos inícios do século 4 até o surgimento da crítica radical de Feueurbach e de Marx.

Constantino pretendeu – e conseguiu – impor a religião cristã que nascera mais de três séculos antes de seu reinado, com o objetivo explícito de unificar o Império Romano, então deliquescente, graças à imposição da ideologia cristã, que projetava no além a recompensa prometida aos pobres que aceitassem como provinda da vontade divina a servidão neste mundo da sociedade de classes. 

É a chamada ‘Servidão Voluntária”, “bata, que eu gosto”.

Não se pode entretanto pretender que a religião desempenhou este papel contrarrevolucionário no caso das guerras camponesas na Alemanha, em torno de 1525. 

Foram levantes ditos milenaristas, em que a habitual projeção da recompensa no além, contanto que persista a submissão dos pobres no mundo terreno, é transferida para o “Já e Agora”, contra a exploração feudal pelos príncipes da Igreja e senhores de terra.

A grande virada contrarrevolucionária que marcou a derrota camponesa foi fortemente influenciada pelo apoio conferido aos príncipes por Lutero, fundador de uma tendência protestante muito conservadora.

Várias rebeliões brasileiras, notadamente Canudos, mostram este papel ambíguo das religiões, com frequência reconfiguradas por heróis camponeses em guerra contra a modernidade, no caso, republicana. 

Se a religião é muito antiga, o ateísmo tem história mais confusa. O próprio termo era uma injúria até o século XIX, quando o conceito de “deísmo” foi introduzido para nomear um “quase” ateísmo, a crença inabalável na existência de um ser ou força superior, mas que eventualmente ignorava a espécie humana, após tê-la criado do nada.

Escritores famosos, como o francês Renan, que não era historiador, paradoxalmente escreveu uma biografia de Jesus, que foi condenada pela Igreja Católica e evoluiu de um catolicismo ortodoxo (preparara-se para ser homem de Igreja em sua juventude) para um deísmo açucarado.

Mesmo se a crença em divindade(s) era indiscutível, filósofos gregos materialistas contestaram a religião, justificando o título do livro de um historiador atual, “Os gregos acreditavam em seus deuses?”.

No século 18, a critica das religiões se fazia essencialmente em nome do agnosticismo e do deísmo.

Por vezes, ousava-se levá-la ao panteísmo, máximo que se podia ousar. Nestas condições, a divindade, embora derrubada de sua posição, persistiu sob a forma de uma interrogação sobre o mundo e a vida.

Foi Jean Meslier (1661-1729), modesto cura de um vilarejo francês no século 18, quem foi o primeiro na história do pensamento, a excluir Deus.

Meslier identificava a natureza à matéria, formando sua tese totalmente materialista. 

Cuidadoso e prudente ao se exprimir em uma época em que a contestação era perseguida impiedosamente, Jean Meslier nunca revelou seus pensamentos, mas os formulou em um “Memorial” revelado por uma carta de Voltaire de novembro de 1735, portanto seis anos após a morte de Meslier.

Assim, sua existência era desconhecida, mas após sua morte foi descoberta uma extensa argumentação anti-clerical, ateia, contrária ao regime feudal e à exploração da massa camponesa pela associação da Igreja, do Estado e dos senhores feudais e finalmente comunista.

Com extraordinária desonestidade intelectual, Voltaire referiu-se a Meslier como “deísta”, escondendo seu ateísmo radical e suas concepções comunistas. Voltaire construiu uma lista parcial de afirmações de Meslier, sem utilizar uma versão completa do “Memorial”.

Ateu e comunista, Meslier foi o primeiro fundador do ateísmo associado ao pensamento socialmente revolucionário, defensor intransigente dos direitos dos pobres. Seu reconhecimento tardio (ver o livro “Le curé Meslier”, de Maurice Dommanget, editora CODA, Paris, 2008) se deve a vários fatores, como a incapacidade psicológica e social dos filósofos mais adiantados do período que precedeu a revolução francesa, de aceitarem a conjugação do ateísmo conceitual, já escandaloso, com algo de inaceitável, uma forma de comunismo 

O estilo do Memorial é pesado, difícil de ler, redundante com frequência, mas de total clareza nas formulações.

Voltaire, que era “deista”, condenava com veemência a Igreja dominante e explorou as opiniões de Meslier, ocultando totalmente seu ateísmo intransigente, que odiava com o mesmo fervor.

Os chamados Iluministas, considerados como precursores das ideias revolucionários dos fins do século 18 e século 19, ignoraram Meslier.

Até mesmo o barão de Holbach, de origem alemã mas intelectual de formação francesa, Diderot, editor da célebre Encyclopédie, que chegaram ao limiar do materialismo, não o conheceram (ou não o “reconheceram”). 

Em seu “Memorial”, Meslier “ataca a religião, a Igreja, Deus, assim como a aristocracia, a Monarquia, o Antigo Regime, a injustiça social, o pensamento idealista, a moral cristã e professa um comunalismo anarquisante”, escreveu o extravagante mas inteligente filósofo Michel Onfray, em seu “Tratado de Ateologia”.

“Pela primeira vez na história das ideias, um filósofo consagrou sua obra ao ateísmo”, conclui Onfray.

A despeito, ou justamente devido a suas ideias subversivas, não foi reconhecido pela Universidade, destino que compartilha com d’Holbach, Helvetius, Sylvain Maréchal e eutros, enquanto as coleções prestigiosas publicam abundantemente Voltaire, Rousseau, Kant, Feuerbach ou Montesquieu, o homem dos três poderes, que todos sabem perfeitamente independentes!

Que eu saiba, um único trabalho consequente sobre Meslier foi efetuado pelo filósofo Paulo Jonas de Lima Piva, no seu livro “Ateísmo e revolta” (Alameda, São Paulo, 2006), que recomendo pelo assunto e pela qualidade do estudo.

Hoje, as brigas religiosas minguaram, mas continua a ser inconveniente manifestar dúvidas sobre a capacidade divina de ordenar o mundo.

O holocausto, que a Igreja condenou mas somente após os fatos, as guerras e massacres ulteriores, as ditaduras, as traições, fizeram da questão da existência de um poder sábio e bondoso, senão uma extravagância, ao menos uma discussão sem propósito.

A liberdade de crer e de não crer e sobretudo de difundi-lo se institucionalizou em muitos países, mas não em todos.

Acredito que este não é um divisor de águas social e de classe e por isso, não faz parte do programa da esquerda qualquer limitação a crer naquilo em que nós mesmos não cremos.

Voltaire teria dito “Não creio numa palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”; assim, a discussão é legítima, mas não se substitui à luta comum contra a exploração, que inclui a luta contra a exploração intelectual, o negacionismo, o terraplanismo, a absurda polêmica contra as vacinas. Inúmeros lideres religiosos têm se manifestado contra a cumplicidade de instituições ditas religiosas com a exploração.

Honra a quem se mantém em posição de minoria, guardando seus princípios e se unindo às forças populares na luta em defesa das liberdades e contra a super exploração do capitalismo.

Juntos, sem apagar divergências filosóficas, mas decididos a não fazer delas um ponto de divisão, iremos adiante.

*Artigo enviado pelo autor, publicado originalmente no portal Viomundo.